Pular para conteúdo

#13 Entrevista com Jair Naves sobre os 15 Anos de Idioma Morto do Ludovic

Publicado em quinta-feira, 14 de outubro de 2021

cabeça

o desconforto com a passagem da vida adulta, um pesadelo que se transformou em música, o pior fiasco de que se tem notícia. as misteriosas e intensas letras de jair naves. o idioma morto de ludovic e a quintessência do rock marginal brasileiro...

tocamos

  • ludovic - desova
  • ludovic - janeiro continua sendo o pior dos meses
  • ludovic - um grande nó
  • ludovic - atrofiando/recém convertido/ex-futuro diplomata
  • ludovic - unha e carne
  • ludovic - qorpo santo de saias
  • ludovic - inexorcizável (um zumbido ensurdecendor)
  • jair naves - breu

mencionados

name-dropping de (quase) tudo que falamos nesse episódio:

  • Pugna
  • Loja tentáculos Sorocaba
  • Bob Dylan
  • Interpol
  • MC5
  • Felini
  • Cabine C
  • Kafka
  • As Mercenárias
  • Joy Division
  • Abrabin
  • Festival Goiania Noise
  • Programa Showlivre
  • Maysa
  • Mission Of Burma
  • Bad Brains
  • Black Flag
  • Qorpo Santo
  • Joni Mitchel
  • Teatro do Absurdo
  • Mundo Livre S/A
  • Nirvana - In Utero
  • Vzyadoq Moe
  • La Carne
  • Vincebuz
  • Vanguart
  • Charme Chulo
  • Velvet Underground
  • Dance Of Days
  • Teenager In A Box
  • Bonde do Rolê
  • Cansei de Ser Sexy
  • Wry
  • Hurtmold
  • Macaco Bong

otras cositas más

Transcrição

Tricerátops Show: Pra começar, pensei em você se identificar pros ouvintes do podcast, e dar um breve depoimento sobre o álbum Idioma Morto e o contexto histórico da época, tanto particular como do país.

Jair Naves: Olá Luitz, amigos do Tricerátops Show. Aqui é o Jair Naves. Estou muito feliz com o convite pra falar sobre o Idioma Morto, segundo disco do Ludovic, a banda a qual me dediquei durante uns bons anos da minha juventude.

Em setembro de 2021, esse disco fez 15 anos. Ele foi originalmente lançado em 2006, sem muita expectativa por parte da banda – a gente não achava que seria um grande sucesso de vendas, um fenômeno de popularidade, qualquer coisa assim, mas a gente sabia que era um material muito bom. Pelo menos eu tinha essa consciência, e acredito que o pessoal da banda também, os selos envolvidos no lançamento [também]. Ainda assim, é surpreendente ver que [o álbum] causa algum tipo de comoção nessa data comemorativa, e é uma coisa que nos alegra e que nos comove, realmente.

Vou contextualizar um pouco quem a gente era e o que era o país naquela época. [O ano de] 2006 era um período muito promissor, de muito otimismo. Não só [como] um país, economicamente falando, [mas também] socialmente falando: foi uma época de ascensão das classes mais baixas e possibilidades que, pelo menos eu, não me lembro de ter tido antes. [Possibilidades] financeiras mesmo, pela baixa do dólar e tudo mais.

Então, a gente via muita banda gravando, os equipamentos eram melhores do que nunca, mais casas de shows do que nunca ou do que desde então. Foi o início também da coisa toda das ABRAFIN (Associação Brasileira de Festivais Independentes) e de festivais independentes espalhados pelo país, então havia um certo otimismo generalizado. Mas, pelo que me lembre, a gente não compartilhava disso. Foi uma época em que muitas bandas vieram pra São Paulo, por exemplo. Lembro de amigos vindos de Cuiabá, Curitiba, Porto Alegre, Brasília, Acre, Belém. Muita gente veio com as bandas pra São Paulo, numa tentativa de se estabelecer como músicos profissionais – não que não fossem músicos profissionais antes, mas em uma tentativa de alavancar suas carreiras. E, na época, realmente parecia ser o começo de uma nova fase de profissionalização e de concretização do circuito independente mais rentável em todos os sentidos, seja na venda de produtos licenciados pelas bandas, ou em uma rede de shows pelas cidades do interior de todo país e capitais. [Em relação à] imprensa também, eu lembro que a gente se beneficiava muito de qualquer menção na MTV local. Acho que foi o ano em que a Rolling Stone Brasil começou a ser publicada, o Idioma Morto foi resenhado na primeira edição. Então, era um época de muita efervescência nesse cenário independente.

Obviamente, há o contraste terrível e extremo com o que a gente vive hoje em dia com o atual governo, com vilanização dos artistas que aconteceu nos últimos anos, o que culminou com a eleição do Bolsonaro e essa coisa toda fascistóide com a realidade da pandemia. Enfim, era realmente o extremo oposto do que a gente vivencia hoje.

foto mostrando como os shows eram fodas

TS: A primeira coisa que me chama atenção é o nome, Idioma Morto. É certo que a expressão aparece na faixa “Trégua”, mas o nome veio antes ou depois do disco ser gravado? Algum motivo específico?

JN: A minha memória não é muito confiável, então é um pouco difícil estabelecer a ordem que as coisas aconteceram. Mas, até onde eu me lembro, o nome foi a primeira coisa. Lembro de falar o nome pro Eduardo (Praça, guitarrista), pro Zeek (Ezekiel Underwood, guitarrista) e pro Júlio (Santos, baterista), que eram os outros integrantes da banda, em novembro de 2005. A gente estava no Goiânia Noise Festival, e, conversando ali, eu disse “tenho o nome pro próximo disco”. Eu sei que, naquela altura, a gente já tinha pelo menos duas das músicas – eu me lembro de já termos “Eu Fiz Pouco Caso de um Gênio” e “Desova” – mas as outras ainda estavam em estado de inicial de composição.

Na época, eu estava estudando outras línguas, estava estudando alemão, e me veio essa ideia de um idioma morto, e como esse conceito se aplicava sobre o que a gente fazia musicalmente na época. Não por estarmos fazendo alguma coisa muito antiquada ou obsoleta, mas era uma linguagem que, pelo menos na percepção que a gente tinha, não muita gente fazia.

É sempre importante contextualizar, porque ali em 2005, 2006, foi o pico de popularidade da coisa toda do emocore, e foi um momento de captação dessa vertente musical pelas grandes companhias, pelas grandes gravadoras etc. Na turnê do primeiro disco, a gente estava muito próximo a esses artistas, essas bandas, já que nosso disco foi lançado pelo pessoal da Dance of Days, na gravadora que eles tinham na época, a Teenager in a Box. Embora a gente estivesse inserido naquele contexto, claramente era muito diferente do que a gente fazia em termos de sonoridade, postura de palco e mesmo o conteúdo das letras.

TS: O que a banda consumia na época desse disco? Que álbuns marcaram o processo de composição e gravação? Alguma leitura serviu de referência para a criação dessas faixas?

JN: É difícil pensar o que a gente consumia exatamente, faz muito tempo. Eu me lembro de estar ouvindo um disco ao vivo da Maysa que saiu pela Elenco. Não sei se era uma gravação do Canecão, mas é um disco clássico de capa branca, como todos os discos daquela gravadora. Por muito tempo, foi meu disco ao vivo preferido. Tem uma coisa do jeito que ela interpreta as canções que me marcou muito, mesmo obviamente sendo de um gênero diferente. Lembro de uma intenção consciente de tentar trazer aquele tipo de intensidade na interpretação que a gente fazia, que era uma coisa um pouco mais inserida num contexto de pós-punk, indie rock, ou como quer que seja o gênero que você se refira.

Eu me lembro também que algumas das músicas foram bem influenciadas pelo Mission of Burma, especialmente a coisa de acordes abertos, um baixo. Quase uma abordagem de guitarra, mais punk, mais suja no baixo.

Certamente tem outras coisas, referências literárias. Obviamente, a coisa do Qorpo Santo, do teatro do absurdo, embora eu não consumisse tanto a produção dele – mas, enfim, foi algo que me marcou.

É super difícil mesmo pensar com exatidão, mas acho que essas 3 referências dão um norte interessante. A gente também quis fazer um disco que soasse o mais cru possível, no sentido que remete um pouco à produção do harcore norte-americano no começo dos anos 80. Especialmente algumas coisas do Black Flag, do primeiro disco do Bad Brains, que tinha uma certa urgência. Lembro quando o Idioma Morto saiu, um amigo músico nos perguntou se era um disco ao vivo, e eu fiquei bem contente com essa percepção. Não era, as coisas tinham sido gravadas separadamente. Mas, acho que [com] a urgência dessas gravações, [e] o fato de não ter sido gravado no metrônomo também (10:33), o andamento das músicas acaba sendo um pouco solto. Acho que dá essa urgência, essa crueza que combina muito com o teor das músicas.

clássica foto com a cadeira

TS: As letras do disco até hoje impressionam por apresentar um tipo de violência inédita na música brasileira. Há algumas imagens bem fortes e perturbadoras, como “meu filho enforcado no cordão umbilical” (“Trégua”), “uma perna amputada que ainda coça, apesar de ausente” (“Um Grande Nó”), “irmãos siameses em vias de separação” (“Desova”) ou a própria faixa “Poço de Hombridade” em si. São imagens bem físicas. Você saberia dizer brevemente o que te levou a essas imagens?

JN: Fico contente que você tenha notado esse lado das letras. Porque uma outra intenção que eu tinha com as composições era de fazer alguma coisa que fosse bem expressiva mesmo. Acho que todas essas metáforas para ocorrências físicas e até com uma certa violência, como você disse, eram para despertar esse desconforto, esse choque.

É curioso quando falo sobre o disco, porque eu sempre me deparo com interpretações ou com análises que eu mesmo seria incapaz de fazer, então eu nunca tinha me atentado pras esses detalhes.

Voltando à coisa toda do emocore que estava super em voga na época: eu, enquanto ouvinte – claro, sem fazer grande juízo de valor ou crítica ao trabalho alheio, nem nada – gostava do conceito de um tipo de música que fosse muito emocional, mas não achava exatamente que [o que] uma boa parte dos artistas daquela época entregavam, então parecia uma coisa um pouco infantilizada. Então, talvez houvesse esse desejo consciente ou inconsciente de fazer algo que fosse um pouco mais real, e que fosse talvez um pouco mais adulto. Muito do disco também é sobre o início da vida adulta.

É curioso, mas, de fato, [há] uma violência bem grande e imagens muito contundentes nas letras. E, tentando entender quem eu era na época e o que eu pensava na época, acho que passa um pouco por essa intenção de levar para um outro lugar a ideia toda de se entregar emocionalmente no contexto de rock, ou punk rock, ou o que quer que seja.

TS: Como era para vocês, como banda, competirem numa cena dominada pelo emo, bandas covers e a ressaca do britpop das bandas gaúchas? Vocês se sentiram sozinhos dentro do rock daquela época?

JN: Especialmente na época do Servil – da primeira demo, na verdade, do Servil – essa sensação de solidão, deslocamento e inadequação era um pouco mais palpável. Era uma época em que começou a ter uma pluralidade muito grande. Foi a época da ascensão do Cansei de Ser Sexy por exemplo, e do Bonde do Rolê. Ao mesmo tempo, a coisa emo acontecendo no Brasil. E também o início de uma onda de bandas instrumentais, como o Hurtmold. Logo antes de gravar o Idioma Morto, nós conhecemos o pessoal do Macaco Bong, de quem a gente ficou muito próximo. De uma série de bandas de São Paulo que a gente admirava, como o La Carne, Vincebuz. O Wry também, a gente tocou com eles. O disco começou a ser gravado no fim de janeiro de 2006, e eu acho que a gente tocou com eles, a convite do próprio Mário (Bross), nesse mesmo mês.

A partir daí, eu não sei se tem exatamente uma coisa de solidão, ou de “não existe ninguém como a gente”, não é isso. Mas, acho que, quando a gente começou a circular mais nos festivais independentes, [a gente começou a] criar uma irmandade com bandas de outros estados, com quem a gente tinha uma relação de parceria, de troca, e mesmo de ajuda em coisas práticas. Quando a gente ia tocar em Curitiba, ficávamos na casa do Charme Chulo. O Vanguart, na primeira vez que eles vieram pra São Paulo, ficaram no apartamento em que eu morava por meses. A mesma coisa com o Macaco Bong, com outras bandas. Foi uma época muito boa de se viver, aquela coisa de um ímpeto de jovens adultos de fazer as coisas acontecerem. E, realmente, pareceu o começo de uma coisa que seria muito – não quero dizer grande – mas uma coisa que seria definitiva na criação de uma rede, que a gente viu que acabou não sendo o caso.

Mas, com essa competitividade, eu não sei, talvez seja uma coisa ruim minha, eu não tenho esse ímpeto competitivo com relação a outros artistas. Eu acho que as coisas são tão… eu não sei, as medidas do sucesso são tão subjetivas. Foi algo para o qual eu me atentei [quando era] muito novo, que as bandas que eu realmente gostava, que realmente me influenciaram, em 80%, 90% dos casos eram bandas que não foram grandes sucessos comerciais da sua época. A gente pode pensar no The Velvet Underground, Black Flag, ou Mission of Burma que citei. E também no Brasil, o Vzyadoq Moe e Mundo Livre S/A, que era uma banda que me inspirou muito a criar minhas próprias coisas quando eu era bem novo. Pra mim, essa geração emo, parecia realmente que eles estavam inseridos em outra realidade a partir de certo momento, quando eles começaram a assinar com gravadoras. Nunca é algo que eu vislumbrei pro Ludovic ou pro que eu fazia. Não porque eu me sentisse melhor do que isso, mas eu sabia que era uma coisa com muitas características, e que tinha um apelo pra um grupo diferente de pessoas e tudo mais.

TS: Como o Idioma Morto soa pra você hoje em dia?

JN: Confesso que eu tenho uma dificuldade muito grande de ouvir meus próprios discos, sejam eles de qual era forem. Mas, quando paro para ouvir o Idioma Morto, por qualquer motivo que seja – e geralmente é alguma coisa ligada a um retorno, relançamento ou ensaios para shows de reunião em que eu tenho que me lembrar das músicas – eu sempre fico positivamente surpreso. Uma coisa que eu fiz há tanto tempo, em condições bem cheias de limitações.

A gente gravou em um estúdio pequeno, a gente era a única banda que trabalhava com rock lá. A Teresa Miguel e o TC Estúdio eram mais voltados para o MPB. Eu me lembro que, na época que a gente estava gravando, muitos artistas de forró estavam gravando lá. E a gente levava algumas referências bem básicas, assim, para ela ter uma ideia do que a gente queria fazer. Eu me lembro que [para] o Idioma Morto, a gente levou o In Utero, e era uma novidade para o pessoal do estúdio.

Quando ouço hoje em dia, eu acho muito bom na verdade. Eu tenho um orgulho especial das letras, eu acho que é tudo muito bem escrito – e é a parte que eu mais me debato comigo mesmo, a parte mais fácil de eu ter críticas severas. Eu fico impressionado também com a sonoridade, o quão viva é. Para usar um termo que eu já usei antes, de uma crueza muito grande, de uma aspereza até. Não sei, eu realmente gosto. É claro que é um retrato de uma fase muito específica da minha vida, como todos os discos são. Mas eu acho que tem uma coisa que era tão difícil para gente até uma certa época: esse caráter ímpar, uma coisa meio única que cercava a banda, é uma grande qualidade do disco hoje em dia. É realmente difícil pensar em um lançamento nacional que seja muito similar ou que dialogue diretamente com esse disco.

TS: Outra curiosidade que tenho é sobre o Qorpo-Santo. Sei que tem um dramaturgo brasileiro com esse nome e, apesar de ter vindo muito antes, o texto dele tinha características que seriam notadas em vanguardas como o surrealismo e o teatro do absurdo, correto? Sei também que era uma figura que foi considerada excêntrica e incompreendida na sua época. Sempre me pergunto como ele chegou até a sua música, se de fato quando você escreveu a canção era nele em que você pensou. Afinal quem era o “Qorpo-Santo de Saias”?

JN: Eu tento evitar ao máximo explicar de forma muito aprofundada o que eu tinha em mente quando escrevi uma determinada letra. Eu acho muito precioso esse espaço para as pessoas fazerem suas próprias interpretações e projeções das suas vivências no que está escrito.

Mas, nesse caso, é mais complicado ainda, porque é muito abstrato. Eu lembro de ter lido – pior que nem é um livro que eu tinha, li numa biblioteca – um estudo sobre o teatro brasileiro. Tinha uma breve biografia do Qorpo-Santo e trechos das obras dele. Eu fiquei muito instigado, especialmente pela história de vida [dele]. Eu achei que a coisa da grafia toda que ele usava, substituindo algumas consoantes, era genial. E o Qorpo-Santo com “Q” era muito instigante, misterioso. Enfim, a biografia dele fala muito sobre problemas de saúde mental que ele tinha ou que atribuíam a ele. Lendo sobre ele, me pareceu ser uma pessoa com uma habilidade enorme para manipulação, muito hábil ao lidar com as pessoas e fazer com que as pessoas suprissem as suas vontades, ou agissem de acordo com a sua vontade.

Eu acho que partiu um pouco daí. É um dos poucos casos [de] como a beleza das palavras no papel fala até mais alto que o significado. Então [sobre] a coisa do “Qorpo-Santo de Saias” me vem essa imagem, eu desenvolvi o tema a partir daí. Eu acho que essa é a explicação mais detalhada que já eu dei sobre essa música até hoje. É uma música que eu sei que causa dúvidas nas pessoas, esse tipo de dúvida, esse tipo de questionamento. Eu lembro de uma sessão no Showlivre que a gente fez assim que o disco saiu, e nos comentários tinha alguém indignado: “mas isso não quer dizer nada”, “o que isso significa?”. E tem um significado muito pessoal para mim, evidentemente. Acho que isso é notável até na forma que a música é interpretada, voltando na questão anterior, como o disco me soa hoje em dia. Mas é isso, é difícil responder em termos muito exatos, quem é, quem não é… eu não sei.

É incrível, as músicas podem falar com muitas pessoas ao mesmo tempo, ou de uma vaga noção de uma pessoa, de uma leitura que você fazia de alguém naquela época, e que depois você veio a mudar. E esse é o charme. Eu sempre lembro do verso da Joni Mitchell, em que ela fala que músicas são como tatuagens (“Blue”, do álbum de mesmo nome, 1970). É um retrato definitivo. É um retrato que pode parecer temporário, uma bobagem, mas que fica realmente marcado em você, e como as pessoas te veem – e é uma grande verdade.

comentário no youtube

Ludovic em “Qorpo-Santo de saias” no Estúdio Showlivre 2006 - YouTube

TS: Existe algum material inédito do Ludovic, coisas que vocês criaram e ficaram de fora? Se sim, vocês pensam em apresentar isso para as pessoas algum dia?

JN: Não existe nenhum material inédito. Após Idioma Morto, a gente tentou compor coisas novas, sem chegar num resultado satisfatório, nada finalizado. Na ocasião da reunião da banda em 2016 ou 2017, a gente lançou uma única música, a gente reaproveitou a única base instrumental que parecia boa daquela época, e lançamos a “Inexorcizável (Um Zumbido Ensurdecedor)”. Mas, de resto, não, não existe nenhum material inédito.

Francamente, eu acho difícil essa missão da gente compor coisas novas pro Ludovic hoje, tendo outra vivência, outras possibilidades à mão. Um estágio, pro bem ou pro mal, evoluído com relação ao que a gente era naquela época. Porque, quando se mexe com algo com o qual as pessoas têm uma memória afetiva muito forte, elas sempre esperam aquilo. A gente conversou recentemente sobre fazer um novo disco com a banda e tudo mais, mas sempre esbarra nisso, uma tentativa de simulação do que era naquela época. Eu acho que é um desafio, porque teria que juntar um pouco do sentimento e da aura daquelas canções com o que nós somos hoje.

Tem exemplos de bandas que fizeram discos de reunião muito bons. Um exemplo recente é o Daughters (You Won’t Get What You Want, 2018). [O disco] ainda é muito diferente do que eles faziam na primeira encarnação da banda, mas ainda dialoga com aquilo e é uma versão ainda mais potente.

Talvez um dia a gente se lance a esse desafio, mas parece muito complicado. Falando por mim, enquanto artista solo tenho uma liberdade de fazer o que eu bem entender. Se eu encontrasse a liberdade no formato dessa banda e com essa banda, talvez seja interessante compor, mas, caso contrário, não sei. Vamos ver o que o futuro nos reserva com relação a isso.

foto da reunião no sesc pompeia

fonte: https://monkeybuzz.com.br/novidades/ludovic-mostra-inexorcizavel-um-zumbido-ensurdecedor/

TS: E projetos solos? Algo novo vindo aí?

Atualmente, eu estou terminando meu quarto disco solo – sem contar os EPs e singles – e é incrível pensar que já é o quarto. Esse disco está sendo mais desafiador do que tudo que já fiz pelas condições impostas pela pandemia e pelo governo Bolsonaro. Essas condições não só sanitárias, mas também econômicas e sociológicas.

É o único disco da minha vida em tive que mudar o processo. Geralmente, a gente ensaiava bastante, entrava em estúdio e gravava. Dessa vez não está tendo ensaio nenhum, e as coisas estão sendo feitas no estúdio: a gente vai lá e grava uma base, em torno da qual a gente aconselha o restante da música, e chama um musico por vez, [vê] o que que dá pra fazer com a bateria, com o baixo, com guitarra, efeitos, teclado, sintetizador. Na verdade, esse método de trabalho só e possível porque a gente tem grande ajuda do nosso amigo Zeca Leme do BTG Studio. Enfim, acaba sendo um processo muito mais lento, muito mais caro, mas criativamente muito interessante, abrindo possibilidades que nunca tive antes.

É o tipo de coisa que faz você pensar. O primeiro disco do Ludovic, que é o meu primeiro disco enquanto compositor, saiu em 2004. Esse vai sair em 2022, são 18 anos de diferença. A gente passa a se perguntar muita coisa relacionada ao ato de fazer musica, ao nosso lugar, a quem nos segue, etc. Então tem todos [esses] questionamentos em volta desse disco, por quanto tempo a gente ainda vai ser capaz de fazer isso, e ainda a coisa toda política que eu falei. Acho que é interessante fechar essa entrevista em que a gente falou de como era em 2006 e de como é agora, em que o circuito das artes tá totalmente deteriorado, sucateado. Agora as coisas tão recomeçando a acontecer aos poucos, mas a gente não sabe em que estado, quem vai sobreviver, quais casas de show vão sobreviver, como vai ser o novo circuito, como o circuito vai se apresentar. É curioso lançar um trabalho novo, considerando que faço isso há tanto tempo, nessas condições. Eu acho que sobreviver nesse meio e continuar produzindo é um privilégio – sei quão privilegiado eu sou por continuar fazendo isso.

Enfim, é um disco que soa com muito frescor pra gente. Eu acho que isso é importante, não quero fazer novas versões de coisas que eu fazia aos 20, 24, 20 e poucos anos. Acho que amadurecer é bonito, envelhecer é bonito, e é importante que isso se reflita nas músicas também. Eu sei que cada pessoa tem uma relação muito particular com música e com arte em geral. Pra algumas pessoas é uma fonte de conforto, um porto seguro. Pra outras é uma espécie de forma de preservação da juventude, no sentido que te remete a coisas que você fazia quando adolescente, e você continua em contato com aquela forma de música. Pra mim, tem se apresentado muito como uma maneira de autoconhecimento e autodescoberta, e descoberta de quais possibilidades eu tenho – talvez até de ampliação das possibilidaes.

O disco sai em 2022. Eu estou muito ansioso pra poder dividir, e espero que seja possível fazer shows e fazer turnês desse disco por aqui.

Capa do episódio